segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O homem liquefeito


CAPÍTULO 1

A LUZ DISSOLVIDA

....O pica-pau sempre me deu medo. Não um medo vulgar, um medo-nojo, daqueles que se tem por barata no suco, um medo bem mais metafísico, bem mais metafórico.
....Desde criança, sentia certo apreço pelos personagens oprimidos, ou um mínimo de remorso por ver aquela criatura pintada à mão - por uma máquina maior que o mundo, uma máquina que a tudo vigia e molda, uma máquina-sistema psicossomático depreciativa de toda a população – criatura demoníaca, se sobressair nas mais diversas situações, pelos mais diversos meios, sobre todos os outros; e, depois, feliz por ter destruído não só uma vida, mas mudado milhares de personalidades pelo mundo, ter posto na mente de cada criança que nada importa além da esperteza sagaz de quem é indiferente a tudo que não a si próprio.
....Estranhamente, ele me atraia. Assistia a cada episódio com um olhar mais que analítico, um olhar dissolvido, imerso em casa listra azul e vermelha, em casa mancha branca móvel da tela do televisor. Constitui pueril inocência acreditar que se trata apenas de imagens dispersas, perdidas em algum momento insignificante do tempo, perdidas em um ponto qualquer da história. Estamos construindo nossas pinturas e tudo, absolutamente tudo, constitui nossa Caverna; todo o resto é sombras.
....Hoje a sala era silêncio. Todos os imagólogos se calaram por um instante. O vento e a luz se confundiram; era impossível dissociá-los. Era impossível descreve-los. Os pêlos se eriçaram. A ânsia era maior que o desespero. O desespero era apenas teatro, o Grande Teatro. E tudo perdera a importância. A caixa de homúnculos estava há muito calada. O silêncio era muito maior que qualquer esperança.


CONTINUA...



Manoel Guedes de Almeida

Teresina-PI, 26 de outubro de 2009.