sábado, 30 de junho de 2012

Amor


Amor  

Então era isso, só uma palavra?
Depois de tudo isso, só uma palavra nuda?
Uma palavra sem espinhos? Assim,
Desenho de tinta sobre o papel?

Meus olhos passam.
Minhas mãos deslizam sobre o papel, traçam seu contorno no espaço,
Sentem sua aspereza no tato. Quantas histórias, esse papel jornal...
Suspiro. Sinapses.
Mas o papel não me diz nada.

Procuro em volta.
Não há quem fez papel
Não há quem fez a tinta
Não há quem fez as letras

Um furo na parede
De onde pendera um quadro
Uma estante sem livros
Uma cama sem corpo
Pó.

O espaço não diz nada.
Só me resta a palavra, ali.

Tento desvendar o átomo da palavra
Letras, fonemas, afixos.
Reviro os dicionários de todas as línguas
Consulto especialistas de todas as nações  
Amigos, vizinhos, amantes...
Rabisco palavra
em toda folha em branco, em todo canto de concreto
Criptografo palavra e envio ao espaço sideral 
Ninguém conhece palavra falada ou escrita

Prego palavra em postes
Os homens colocam palavra em bandeiras
Pintam palavra na testa
Fazem pós – doutorado em palavra
Palavra batiza ruas, creches, corpos
Fazem poemas sobre palavra

Tento pronunciar a palavra
A boca teme. Treme. Treme.
Grunido.
É só uma palavra. E eu sou um homem.
E o quê pode a palavra ante o homem?


 Manoel Guedes de Almeida
Floriano-PI, 30/06/12

Le poids de la poussière


Foto: Manoel Guedes de Almeida 
Praia de Santos, canal 5, 2008. 

Le poids de la poussière 
(O peso do pó) 

A boca tinha poucas palavras e muitas dúvidas
E uma umidade fria que escorria dos olhos
Os pés, justapostos, esperavam o ato
E tremiam ante a aproximação
A mão esquerda também tremia, espalmada sob o epitélio
Do peito inquieto

A poeira do criado mudo, as folhas rabiscadas,
A parede ao final do corredor
Espiavam desconcertados. O quê seria aquilo?
Alguma memória?
Outra conjectura?

Vagarosamente, o pé repousa sobre o espinho. Um passo.
O chão liso do assoalho não entende a pressão imposta
E cada molécula de ar da sala sente a presença do medo
O pé deixa uma pegada. É medo.
Um cheiro tremido e cinza unta a pele e seus pelos.

A boca diz uma palavra, mas apenas a poeira escuta.
O pé ensaia um passo. O mundo dá duas voltas.
O espinho crava. Dois rios?

As unhas ruídas não entendem. O Sol se esqueceu de nascer.
As mãos, as duas, se emocionam. Leves.
Leve.

A respiração é rápida e breve.
Um adeus mudo, cego, surdo. 


Manoel Guedes de Almeida
Floriano – 30/06/12

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Quíron, o curador ferido


Quíron, o curador ferido

Custa a crer nesta tua concretude
Que exista alguma outra forma. Algum outro tamanho
Que somente o amor cure. Que reformulem as mãos, o contorno, a fôrma.

Metade humana. Fera bruta a flauta flui, ferida a divindade
Sob o veneno da alma há dor.
És sobre-humano. Capaz de sentir.
Medir, pesar. Sentir. Desenhar os contornos da dor e sentir.
A ferida que não quer sarar. A alma. Acesa.

Calma, inda existe solidão em algum lugar da Terra.
Renda-se. Queres morrer?
Não podes.
Queres viver? Encimentar cada célula do seu corpo?
Não podes.

Devias ter perdido o lado humano. Entender a dor
É vivê-la.

Manoel Guedes de Almeida
Teresina, 18/06/12




Dizem que devemos praticar cuidado ao invés de assistência. Como "cuidar"? Como uma mãe cuida de um filho? Como alguém que ama? Dizem (alguns) que a prática do cuidado parte da criação de alguma coisa ou ferramenta que una as pessoas, que crie vínculo. Outros, mais quironianos, acreditam que parta do conhecimento de si, suas fraquezas, medos, anseios.. e ver o quanto isso é subjetivado no desenho de seu corpo no espaço, de seu corpo concreto, de carne e osso. E entender que o Outro também se constrói assim. Então é isso: cuidar parte de entender e aplicar nas relações humanas uma construção simbólica em contraposição à construção cartesiana do corpo e aceitar como legítimas outras formas de viver diferentes da sua, entendendo, assim como Quíron, nossas feridas, nossas fraquezas e forças. Mas e se morrermos também? Somos assim tão vulneráveis? Nos permitiremos sentir?